Que importância atribui ao papel da gestão e da liderança na área da Saúde pública, bem como à correlação entre ambos?
Não devemos confundir as prioridades. As estruturas de saúde vivem para prevenir a doença e tratar os doentes – estes são os seus objectivos por excelência. Só que a saúde em Portugal, apesar dos indiscutíveis avanços verificados, sofre infelizmente de um problema básico que aparenta ser insolúvel – meios financeiros escassos para aplicar a fins de investigação, terapêuticos e outros cada vez mais exigentes em termos de financiamento. E tudo isto a acrescer a uma política sistemática de sub-orçamentação que obviamente agrava a situação. Por causa disso é que a gestão em saúde tem aparecido como vector importante na resolução desse aparente “bloqueio”. O problema da liderança é outro, no meu entender. De facto, enquanto os políticos e os burocratas não se capacitarem de que existem competências potenciais no sistema para levar por diante a sua grande reconversão, deixando de querer tudo controlar, definir e gerir, dificilmente encontraremos um caminho de regeneração.
Que relação existe entre a racionalização de custos com a gestão e a liderança nos hospitais?
Sem querer brincar com coisas muito sérias, dir-lhe-ei nenhuma! Ando há já alguns anos a defender uma posição que procura situar devidamente o problema: quando, de uma vez por todas, se focalizarem as atenções de gestão nos serviços e unidades nucleares (desde os cuidados primários até às organizações hospitalares); quando se der aos líderes e potenciais lideres desses serviços e unidades a formação básica e posterior autonomia e responsabilidade directa de gestão e, finalmente, quando se tiver a coragem de desmultiplicar por todos os níveis de responsabilidade na saúde a contratualização de objectivos associada à verdadeira e eficaz avaliação de desempenho em excelência das organizações – enfim e também, se os tempos eleitorais se quisessem subordinar aos enormes e superiores interesses do doente e dos profissionais da saúde – a dita “racionalização de custos” seria o subproduto de um desempenho de excelência comandado pelos profissionais que, melhor do que ninguém, sabem o que fazer. Deixe-me dar-lhe um exemplo: o Prof. Miguel Gouveia liderou um estudo que foi analisar a performance de algumas USF’s – os resultados obtidos espantaram muita gente, nomeadamente na tal “racionalização de custos”. A pergunta a fazer é só uma: os profissionais que lideram e gerem aquelas USF’s eram diferentes ou ficaram diferentes quando iniciaram esse exercício? Eu, por mim, tenho uma resposta muito simples: criou-se, de facto, com as USF’s uma ”cultura de gestão” que, na minha opinião, só há que generalizar a respectiva aplicação, sem interferência demasiada dos burocratas e políticos, a quem devia competir naturalmente – e no meu entender, só! – definir a estratégia e superintender a respectiva aplicação. Enquanto a actual tentativa de racionalização de custos passar notoriamente ao largo do comprometimento, da participação activa e da co-responsabilização das lideranças intermédias nos hospitais, pouco conseguiremos ganhar – é esse o meu mais profundo convencimento.
Tendo em conta o actual panorama da Saúde, considera que seria necessário um maior investimento na formação de quadros em gestão e liderança?
Mais do que investir eu diria que será preciso criar uma “vaga de fundo” entre os profissionais da saúde no sentido de lhes ser pedido este contributo para a efectiva regeneração de todo o processo decisório na saúde. Não há sector nenhum de actividade onde o nível de qualificação e competência dos seus profissionais sejam mais elevados. O que se lhes pediria não é saber de contabilidade, direito do trabalho ou gestão operacional – para isso, lá devem estar os técnicos nessas matérias. O que precisamos é que quem está à frente dos diversos níveis da hierarquia de decisão sintam a necessidade de saber exercer uma efectiva liderança empreendedora, fora dos corporativismos, das “quintas e domínios privados do autoritarismo”, do empirismo nas fontes e informação ou nos meios disponíveis para verdadeiramente gerir o que se responsabiliza. O cerne da liderança é a motivação, comparticipação e retenção de competências, a todos os níveis – se os ditos liderem não o são, de facto, ou não encontram razões para se envolverem no processo, a emersão na formação pode ter algum contributo mas é seguramente efémero.
Na sua opinião, poderíamos afirmar que a gestão e a liderança constituem a base que sustenta toda a máquina hospitalar?
Durante anos tenho feito a mesma pergunta a centenas de profissionais das organizações hospitalares, a propósito do célebre controlo biométrico de assiduidade: no seu serviço, V. não consegue identificar um-a-um os relapsos, os mandriões e os incompetentes? A primeira reacção do visado é sorrir – a segunda é o abanar de cabeça afirmativo. A seguir, faço uma segunda pergunta: na sua opinião, no serviço liderado pelo doutor xis (notoriamente um líder assumido) há possibilidade dessas situações se manterem? A resposta é sempre a mesma – com muito menor probabilidade! A base de sustentação do que chama “máquina hospitalar” é a solução organizacional (boa ou má; eficaz ou ineficaz) escolhida para o seu funcionamento corrente. O centralismo, a burocracia, o não acreditar na estrutura nem nas lideranças intermédias – tudo isso é que tem minado, ano após ano, o funcionamento das organizações hospitalares. A gestão e a liderança só poderão ter um contributo eficaz e positivo para a regeneração do sistema se e só se houver uma “revolução de mentalidades” ao nível ministerial, das administrações regionais de saúde e das próprias administrações hospitalares.
“Os Sistemas de Saúde têm que ser analisados e estruturados como uma organização empresarial, sendo necessário obter rentabilidade económica, prestar serviço de qualidade centrado no atendimento dos clientes/pacientes, e sendo eficiente na cadeia de valor através da fiabilidade na movimentação de materiais e de informação”. Concorda?
Desconheço quem escreveu o texto mas vou desiludi-la: não concordo definitivamente com os diversos pressupostos subjacentes à afirmação. Em primeiro lugar – e estamos a falar do SNS – confunde-se um objectivo de desempenho de excelência organizacional com a cultura empresarial e a consequente “rentabilidade económica”. Ora, como contribuinte e potencial utente, repugna-me o objectivo do SNS de obtenção de lucro. O nosso grande objectivo económico dentro do SNS deverá ser, isso sim, não ter prejuízos. Parece a mesma coisa mas não é. Um prejuízo é fatal para qualquer organização pela razão simples de ter de ser financiado como aplicação de fundos que é e, portanto, com o recurso sucessivo a capitais alheios (passivo). Daqui que seja rigorosamente diferente, em termos de gestão, ter um objectivo de equilíbrio sustentado das contas ou ir mais além e procurar remunerar o accionista-Estado. Por outro lado, quando me falam em “prestar serviço de qualidade” em saúde, fico com os pêlos todos eriçados. Em saúde, a qualidade é intrínseca ao respectivo exercício, faz parte integrante da cultura, dos pressupostos e da visão das diversas lideranças. O difícil – e vimos todos isso nos diversos processos de certificação hospitalar – é obter a comparticipação assumida da estrutura para esse objectivo e que só se consegue de uma única maneira: de baixo para cima e nunca de cima para baixo. E não estamos a inventar nada: a bibliografia sobre estas matérias é autenticamente avassaladora – não são os administradores ou os directores de topo que decretam a qualidade como vector identificador da cultura de uma organização.
Quais são, para si, os mais importantes instrumentos de gestão e os factores que poderão ter mais influência numa gestão mais eficiente do sistema de saúde português?
Repito-lhe o conselho que dei um dia e que, infelizmente, não foi seguido: por muito experiente que seja o gestor que chegue à saúde, ele tem de se capacitar que tudo o que aprendeu será posto em causa e em dúvida, tal é a originalidade e as dificuldades do exercício da gestão no sector. Para isso, um primeiro grupo de princípios: carradas de bom senso, de humildade e capacidade de ouvir. Depois, num segundo grupo de factores cruciais, apontaria o objectivo dos consensos o mais alargados possível para as decisões mais críticas e a capacidade de convencimento perante a explanação clara da visão da liderança. Finalmente, vou repetir-me: enquanto não se criarem mecanismos e instrumentos de avaliação de desempenho em excelência das organizações a todos os seus níveis e, a partir daí, estabelecer os respectivos programas de contratualização, com a consequente mudança cultural do foco nos serviços e unidades, é minha convicção que pouco se avançará a caminho da eficiência e da eficácia do respectivo funcionamento.
Conhece exemplos concretos de sistemas de sucesso que podem fazer a diferença na gestão de um hospital?
Conheço e não preciso de sair do país. Em todos os hospitais do país, há exemplos de referência que deveriam ser estudados e mimetados; a própria iniciativa privada trouxe para a saúde soluções e práticas excelentes que poderiam ser adoptadas ou replicadas; por último, por favor não estraguem com burocracia, intromissão e desalento a extraordinária experiência das USF’s!
Como definiria o actual panorama da gestão e liderança no sistema de saúde português?
Quem vai ser o próximo Ministro – daqui a semanas ou a meses? Se houver alguma alteração no poder, quantas administrações regionais, quantas administrações hospitalares, quantos projectos estruturantes serão mudados ou repensados? É este, de facto e só, o nosso fado no SNS! Viver sempre a prazo curto das decisões (mesmo quando não há mudanças no poder político), a tal “navegação à vista” onde se misturam objectivos megalómanos com a pressa de “fazer coisas” – isto sim, põe em risco grave o SNS. Estou convencido que é possível encontrar uma solução perene e sustentada para o SNS, na sua dupla perspectiva – a económica e regulamentar (que competirá obviamente ao Estado) e a de gestão, para a qual existem potencialidades indiscutíveis não utilizadas.